Os números relativos às mulheres assassinadas no primeiro semestre deste ano, no Ceará, superam as estatísticas até aqui levantadas. Nada menos do que 76 vítimas sucumbiram diante de seus algozes, normalmente, os próprios companheiros ou ex-namorados, maridos, que matam de forma banal.
O Brasil ainda não se refez das duas últimas tragédias envolvendo crimes bárbaros contra a mulher. Em São Paulo, a advogada Mércia Nakashima foi encontrada morta, boiando numa represa. O principal suspeito, seu ex-namorado, Mizael Bispo, que teria contratado um vigilante para fazer o “serviço”.
Em Minas, a ex-amante do goleiro do Flamengo, Bruno teve um fim macabro, sem comparação até mesmo com os mais violentos filmes produzidos pela indústria do cinema. Depois de morta e esquartejada, Eliza Samudio, 24,teve os seus restos mortais atirados para os cães, segundo inquérito policial.
Essa autêntica dizimação contra o sexo feminino no Estado teve o recorde em 2009, levando-se em consideração os últimos seis anos, com 136 assassinados, conforme levantamento do jornal. Nos primeiros seis meses de 2010, foram 76 crimes. Caso se mantenha essa realidade sangrenta, passaremos dos 150. Na região do Cariri, onde cerca de 20 mulheres são trucidadas todos os anos, os números levaram muitos especialistas a estudar o “fenômeno”.
Para monitorar essa triste realidade, a Universidade Estadual do Ceará (Uece) criou, este ano, o Observatório de Violência contra a Mulher (Observem). A assistente social e doutora em Sociologia, Maria Helena de Paula Frota, coordenadora da instituição, acredita que a cultura da impunidade e o machismo, que perduram de há muito, são as principais causas de tanta atrocidade contra a mulher. “Os agressores acreditam que não serão punidos. Por isso agem dessa forma. Quando a Lei Marinha da Penha entrou em vigor, no final de 2007, tivemos logo a seguir (em 2008) uma diminuição dos casos de agressão e assassinato. Depois, as estatísticas voltaram a subir. Apesar disso, ainda creio que possamos mudar essa realidade”, afirma Maria Helena.
A coordenadora do Observem lembra que, atualmente, as mulheres estão perdendo o medo e denunciando seus agressores. “É que muitos deles continuam reagindo, como se não aceitassem que nós estamos num outro tempo”. Outro aspecto que deve ser trabalhado é o da mudança de hábito.
“Essa forma de discriminação com que são criadas as mulheres em relação aos homens é milenar. Não se pode mudar os costumes de uma hora para outra. Levará décadas para acontecer. A educação será importante para que os filhos homens de hoje respeitem suas companheiras amanhã”.
A professora de Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Heleni Barreira, enfatiza que o mais preocupante é que a maioria das agressões e dos crimes são praticados por maridos, namorados, noivos, companheiros ou ex-parceiros que já não se relacionam mais com a vítima. “Mesmo após rompida a relação, esses homens ainda se sentem donos e com direito a mandar na ex-companheira”.
Heleni Barreira explica que a agressividade é inerente à condição humana. “Nós precisamos de um certo grau de agressividade para nos defendermos das adversidades. Ao contrário dos demais animais, o homem (no sentido antropológico), desde muito cedo aprende a linguagem e é inserido nos códigos sociais. A partir disso, da nossa educação, vai aprendendo a controlar os seus instintos e impulsos. É por isso que, por mais raiva que possa vir a ter, não partem para a agressão e às vezes, para o assassinato”.
“Situação contrária – prossegue a professora – ocorre aos agressores. Eles extrapolam da passagem (momento de raiva) para o ato (agressão). É uma atitude primitiva, radical. Até quem lida com essa questão fica estarrecido com um crime atrás do outro, com tanta crueldade”.
No entender da professora, o problema só será resolvido com uma série de decisões, como a mudança da lei, que deveria ser mais rigorosa. “Um assassinato de uma mulher por um companheiro pode, além de tudo, comprometer a criação dos filhos”, alerta a psicóloga.
JUSTIÇA
Medidas protetivas mantêm os agressores longe das vítimas
Nada menos do que 1.869 medidas protetivas foram adotadas nos seis primeiros meses pela titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, juíza Rosa Mendonça, em defesa de mulheres ameaçadas de morte.
Com a adoção das medidas, os possíveis agressores ficam impedidos por lei de se aproximar das vítimas. O instrumento tem se mostrado eficaz para afugentar os candidatos a algoz.
Segundo Rosa Mendonça, nos anos 80 do século passado, após a eclosão de crimes de grande repercussão nacional um pouco antes, como os de Doca Street, que matou a sua companheira Ângela Diniz (1976), e o cantor Lindomar Castilho, que assassinou Eliane de Gramond (1981), a luta contra a violência tendo como vítima as mulheres tomou novo impulso.
“Foi muito importante esse período. Em 1985 surgiu a primeira Delegacia da Mulher, em São Paulo. Antes, disso, as mulheres se sentiam intimidadas. Em 1995, foram criados os juizados especiais de pequenas causas, que passaram a julgar os crimes contra as mulheres, que resultavam em punição brandas, como o pagamento de cestas básicas”, diz a juíza.
O certo é que aconteceu um retrocesso. “Mais de 50% dos processos encaminhados em juízo eram tratados com desdém, considerados como briga de marido e mulher, o que passou a desestimular as vítimas”, afirma Rosa Mendonça.
Ressurgimento
Após esse período de desilusão, a luta das mulheres por justiça voltou a aflorar. “O movimento ganhou força. As leis começaram a ser modificadas, até surgir a “Maria da Penha”, que trouxe medidas como a prisão em flagrante dos agressores, prisão preventiva decretada por crimes de menor potencial e instauração de inquérito em todos os processos”, lembra.
A juíza observa que, antes da Lei Maria da Penha, a mulher ia registrar a denúncia e o delegado mandava ela levar a notificação. “O resultado é que ela voltava a apanhar”.
Apesar de ver uma evolução na luta feminina contra a violência, Rosa Mendonça diz que muito ainda precisa ser feito. “O juizado não pode trabalhar sozinho. Em Fortaleza existem apenas dois centros de referência e duas casas de abrigo. No Interior, não temos nada”.
Conforme a magistrada, as casas de abrigos existentes em nossa Cidade – uma da Prefeitura , outra do Estado – não atendem a demanda. “Precisamos melhorar o atendimento para combater a violência. Muitas mulheres vêm para cá sem ter sequer o dinheiro do transporte. Foi preciso fazer um convênio com a Secretaria de Ação Social para receber vale transporte e repassar às vítimas”.
Crack
Cerca de 90% dos processos envolvendo agressão às mulheres têm como origem o uso do crack, uma das drogas mais devastadoras. “São questões que precisam ser atacadas imediatamente. A droga, a falta de formação profissional e o acompanhamento psicológico dos filhos de mulheres agredidas fazem parte dessa complexa situação. Avanços ocorreram, mas é preciso caminhar com mais celeridade rumo às soluções”.
A opinião do especialista
Desvalorização
Mary del Priore – Historiadora
Muito se fala da violência de homens contra mulheres, e com razão. Vivemos numa sociedade machista. Silêncio, porém, sobre aquela das mulheres entre elas. Os números são chocantes. Cada vez mais, mulheres, sobretudo jovens, agridem outras mulheres, jovens ou idosas. Os números dos conflitos entre mães e filhos, entre colegas de trabalho também assusta. Tudo indica que o problema não está na rua. Mas em casa. É lá que as mulheres escondem seus sentimentos masculinizados. Muitas protegem filhos que agridem outras mulheres, não os deixam lavar louça ou arrumar o quarto. “Homem não nasceu para isso”! A ideia é tornar marido e filhos dependentes delas em assuntos domésticos, pois muitas são dependentes financeiras, deles. Outras calam sobre comentários machistas de seus companheiros, incentivam piadas e estereótipos sobre a “burrice” feminina, cultivando o mito da virilidade. Gostam de se mostrar frágeis, pois acreditam que eles assim se sentem mais potentes, e de ser chamadas de “xuxuzinho” ou “gostosona”, tudo o que seja convite a comer.
O título de “cachorra” é um elogio. Mulher forte? É “sapatona”! A “Melancia”? Linda! Acreditam que a feminilidade é um estado natural a ser conservado e que todas as despesas aí investidas, até cirurgias que desfiguram, são um bom negócio. São coniventes com a propaganda sexista e com a vulgaridade da mídia. Na TV, aceitam temas apelativos e não se incomodam que os mesmos encham a cabeça de suas filhas.
Conclusão: há uma desvalorização grosseira das mulheres, por elas mesmas. Este comportamento ajuda, certamente, a que se continue cavar um grande fosso entre homens e mulheres. É compreensível. Afinal, o companheiro, o marido, o namorado teve uma mãe machista! Vamos eliminar a violência entre homens e mulheres, mas também, aquelas enraizadas dentro de nós.
Fernando Maia
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